REPÚBLICA DE FIUME, 8 ANOS


Uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado; somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. 
Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo; foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino.

Glauber Rocha



REPÚBLICA DE FIUME

SÃO PAULO CHICAGO


Raposo Tavares que voltava do sertão com caixas de milhares de orelhas de índios cortadas, como prova de sua superioridade contra jesuítas, contra índios escravizados

Raposo Tavares tinha o costume de arrancar as orelhas das vítimas.

Antônio Raposo Tavares, em uma de suas marchas pelo sertão, retornou trazendo vários caixotes com milhares de orelhas salgadas de índios e de escravos foragidos.

(...)

Éramos tantos nesse território paulista 
Milhares eram os índios nesse território paulista 
Rechaçados foram para longe, expulsos do território paulista 
Índios guaranis hostis, fora, índios anjos caídos vocês estão estão expulsos do nosso paraíso, 
dos nossos imensos cafezais 
O café que hoje faz a riqueza da zona 
O território paulista é uma imensa fazenda de café 
Tornou-se um imenso cafezal. 

Arma escaramuça, mata extermina, mata ele. Mata índio. Desapropria.
Tira terra dele pra fazer imensa fazenda de Coffea Arábica. 
Porque já se disse na América repetidamente desde Colombo 
Índio bom é índio morto é índio morto
Mata, mata mais, mata expulsa-os do território paulista, pra fazer cafezais e cafezais 
Mata por epidemias induzidas por roupas contaminadas 
Enfia vírus alienígenas, contamina 
A feitiçaria domina vocês, expulso 
São Paulo uma imensa fazenda de café. 
Velho oeste paulista. Farwest. Bang bang paulista. 
Veste neles roupas contaminadas para que, não imunes às doenças letais, adoeçam e morram. 

 Nós somos sobreviventes da chacina dos fazendeiros do café que nos expulsaram de nossas terras para no local edificarem imensas lavouras de café, sobreviventes desse boom desse terrorismo cafeeiro, marginalizados, continuamos vegetando sem terra e sem habitat pelo território amargo de São Paulo. 

Os historiadores do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo não escrevem esse expulse-índios! 
 
With the Man
Walt Whitman 
trad.Paulo Leminsky 

“aqui 
no oeste 
todo homem tem um preço 
uma cabeça a prêmio 
índio bom é índio morto 
sem emprego 
referência 
ou endereço 
tenho toda liberdade 
pra traçar meu endereço 
nasci
numa cidade pequena 
cheia de buracos de balas 
porres de uísque 
grandes como o grand canion 
tiroteios noturnos 
entre pistoleiros brilhantes 
como o ouro da Califórnia
me segue uma estrela 
no peito do xerife de Denver” 

Francisco Carlos 
em São Paulo Chicago



MARKU RIBAS - 4 LOAS - 2010

XAPIRI



Os espíritos xapiripë dançam para os xamãs desde o primeiro tempo e assim continuam até hoje. Eles parecem seres humanos mas são tão minúsculos quanto partículas de poeira cintilantes. Para poder vê-los deve-se inalar o pó da árvore yãkõanahi muitas e muitas vezes. Leva tanto tempo quanto para os brancos aprender o desenho de suas palavras. O pó do yãkõanahi é a comida dos espíritos. Quem não o “bebe” dessa maneira fica com olhos de fantasma e não vê nada.
 Os espíritos xapiripë dançam juntos sobre grandes espelhos que descem do céu. Nunca são cinzentos como os humanos. São sempre magníficos: o corpo pintado de urucum e percorrido de desenhos pretos, suas cabeças cobertas de plumas brancas de urubu rei, suas braçadeiras de miçangas repletas de plumas de papagaios, de cujubim e de arara vermelha, a cintura envolta em rabos de tucanos. Milhares deles chegam para dançar juntos, agitando folhas de palmeira novas, soltando gritos de alegria e cantando sem parar. Seus caminhos parecem teias de aranha brilhando como a luz do luar e seus ornamentos de plumas mexem lentamente ao ritmo de seus passos. Dá alegria de ver como são bonitos! Os espíritos são assim tão numerosos porque eles são as imagens dos animais da floresta. Todos na floresta têm uma imagem: quem anda no chão, quem anda nas árvores, quem tem asas, quem mora na água... 


São estas imagens que os xamãs chamam e fazem descer para virar espíritos xapiripë. Estas imagens são o verdadeiro centro, o verdadeiro interior dos seres da floresta. As pessoas comuns não podem vê-los, só os xamãs. Mas não são imagens dos animais que conhecemos agora. São imagens dos pais destes animais, são imagens dos nossos antepassados. No primeiro tempo, quando a floresta ainda era jovem, nossos antepassados eram humanos com nomes de animais e acabaram virando caça. São eles que flechamos e comemos hoje. Mas suas imagens não desapareceram e são elas que agora dançam para nós como espíritos xapiripë. Estes antepassados são verdadeiros antigos. Viraram caça há muito tempo mas seus fantasmas permanecem aqui. Têm nomes de animais mas são seres invisíveis que nunca morrem. A epidemia dos Brancos pode tentar queimá-los e devorá-los, mas eles nunca desaparecerão. Seus espelhos brotam sempre de novo. Os Brancos desenham suas palavras porque seu pensamento é cheio de esquecimento. Nós guardamos as palavras dos nossos antepassados dentro de nós há muito tempo e continuamos passando-as para os nossos filhos. As crianças, que não sabem nada dos espíritos, escutam os cantos do xamãs e depois querem que chegue a sua vez de ver os xapiripë. É assim que, apesar de muito antigas, as palavras dos xapiripë sempre voltam a ser novas. São elas que aumentam nossos pensamentos. São elas que nos fazem ver e conhecer as coisas de longe, as coisas dos antigos. É o nosso estudo, o que nos ensina a sonhar. Deste modo, quem não bebe o sopro dos espíritos tem o pensamento curto e enfumaçado; quem não é olhado pelos xapiripë não sonha, só dorme como um machado no chão. 

Davi Kopenawa & Bruce Albert, publicado e analisado por Eduardo Viveiros de Castro em A Floresta de Cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos (2006). Mais tarde republicado (reescrito e ampliado) no livro de Kopenawa e Albert: La Chute du Ciel: Paroles d'un Chaman Yanomami (2010), traduzido ao inglês como The Falling Sky: Words of a Yanomami Xaman (2013) e ainda não traduzido ao português (ou não publicado). Trata-se de uma das obras mais importantes da antropologia escrita nos últimos tempos, fruto do convívio de décadas entre o xamã Yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo Bruce Albert.




 TIGANÁ SANTANA - THE INVENTION OF COLOUR - 2013



 I - Manifestos

A nostalgia do futuro era a febre que dominava o começo do século, de 1900 até a segunda grande guerra, todos estavam siderados pela ideia de que o futuro era o centro ontológico, nos anos 60 até o final do século XX, a Nostalgia do passado era o vetor, seja ele um passado edênico, bucólico e idílico (nos hippies por ex.) ou um passado escravocrata e feudal (nas elites dominantes, na burguesia conservadora de ultradireita e etc.), o que vemos nos recentes acontecimentos, que desencadearam as várias marchas de protesto em todo o Brasil, é o começo da morte da Nostalgia e a chegada do presente, finalmente chegamos a um ‘tempo presente’ que inaugura um lugar sem centro como uma ontologia, algo muito parecido com a Internet, mas muito mais complexo do que ela. Condenados ao atravessamento de um vazio que ocupa o lugar de uma profecia , um vazio que é como uma partitura em branco para a criação de um novo status para a chamada ‘ordem social’ que tem na cartografia da rede seu símile e nas instituições seculares seu simulacro. Podemos dizer que o ‘Brasil não é mais o país do futuro’ porque todos estes movimentos de indignação e desespero negam um devir conhecido para inaugurar o vazio criativo de uma presentidade infinita. O pensamento de classe (da classe dominante principalmente) é extremamente redutor diante da complexidade do acontecer espontâneo de todos estes precisos gestos de negação devidamente registrados para uma avaliação que nos escapará sempre que tentarmos enquadrar estes gestos, sejam eles, os óbvios gestos de vandalismo ou seus opostos, gestos que atravessam todas as classes sociais e precisam ser analisados fora da linha podre do pensamento dicotômico, econômico ou das linhas categóricas da sociologia.





II - Manifestos (Segunda parte)

Uma segunda instância da força de invenção materializada através dos movimentos de ocupação das ruas, seja pelo ataque aos símbolos (através das ações  da dimensão  chamada Bloc destas forças)  ou pela ocupação das vias públicas por grupos em um fluxo organizado de outro modo, esta segunda instância que chamo de ‘refluxo e criação de uma cartografia conceitual’ que irá desembocar em novas estratégias de organização da  revolta  está em pleno vigor no momento em que escrevo este texto, mas é necessário não associar tais forças a um grupo x ou y, elas são o resultado de um processo que se iniciou entre 2000 e 2010, da criação de um pensamento autônomo e deliberativo como prática possível, este pensamento se emancipou  em todas as direções para longe da cristalização que ocorre de seus entusiasmos dentro dos organismos coletivos, sejam eles conselhos municipais, grêmios, sindicatos ou coletivos, se emancipou para agir fora de certos determinismos dicotômicos, existe um entrelaçamento entre as ações destes fluxos que são como que amplificações dos fluxos de viciados em crack ou de moradores de rua expulsos de certas zonas urbanas e da  passeata infinita dos viciados em crack ao rês do chão ou da passeata infinita de pessoas invisíveis composta essencialmente por moradores de rua, estas manifestações constantes ao se configurarem como extremos de uma violência absoluta são os átomos paradigmáticos destes fluxos e operam em sinergia com eles.





III - Black Bloc Forever

Encerrando o pequeno ensaio onde analiso as manifestações de junho e suas irradiações, agora elaboro aqui uma defesa do movimento black bloc, não há nenhum problema em destruir aquilo que não deveria existir, esta parece ser a premissa dos Black Blocs, um enunciado profundamente lógico, quando o pensamento crítico analítico se transforma em uma ação direta, não vejo nisso  um excesso ou a materialização de impulsos niilistas de fundo infantil mas sim o oposto disso, me parecem na verdade intervenções da energia criadora a partir de um imaginário libertário que talvez em alguns momentos se alimente do desejo de vingança, se pensarmos que as grandes metrópoles foram fundadas sobre genocídios, massacres e espoliações, enfim, fundadas pelo crime. Os Black Blocs poderiam substituir as máscaras por uniformes de soldados da PM e freiras e padres e criar assim um gigantesco happening. É dentro da dimensão do happening que acredito as ações dos Black Blocs sofreriam uma ampliação feroz, mais do que a força da destruição dos símbolos da opressão, o poder, em seu centramento de violências organizadas como serviços, teme a ridicularização pela via do humor de seus símbolos, Hitler perseguiu primeiro os humoristas, uma das maiores fragilidades da estratégia bakuniniana de destruição dos símbolos do Estado é o excesso de seriedade trágica de seus membros, a dimensão épica de tais atos de valor que funcionam como proposições da criação através da destruição, o humor é uma das nossas maiores armas, agir em silêncio naquilo que um poema de Hilda Hilst chama de ‘lúcida vigília’ também seria uma outra estratégia interessante. O que podemos aferir de todas estas ações é que se abre agora uma nova dimensão e um novo campo para os Black Blocs, onde todos podem agir como artistas em perigosas fusões de bobos da corte com guerrilheiros psíquicos. Algumas causas como a do Wi-Fi aberto e a Internet livre para todos na prática e não em tese, o passe-livre, a desmilitarização das polícias e uma verdadeira autonomia deliberativa para os conselhos comunitários gerando um controle social e o início do fim da sociedade de controle se abrem para os Black Blocs como  vetor de ações cada vez mais pontuais, humorísticas e destrutivas, ações que são uma resposta aos massacres e genocídios patrocinados pelo Estado militarizado em zonas de exclusão, genocídios e massacres que deveriam gerar uma espécie de ‘Julgamento de Nuremberg’no Brasil para os atuais governantes, os atuais e os anteriores. Longa vida aos Black Blocs! Como diz a canção ‘A face do destruidor’ da banda paulista Titãs: O construtor não pode construir porque o destruidor não destrói.

Marcelo Ariel

ENGLISH VERSION 

translated by pollutionculture




RÁDIO QUILOMBO INSURGENTE MÓVEL IV


r_quim#4: Letieres Leite, Orquestra Rumpilezz & Opanijé. 

Tudo gravado em 21/09/2012, pouco antes do solstício da primavera, durante show realizado no Auditório Ibirapuera, em São Paulo. Professor Letieres Leite conversa com Marcelo Ariel sobre downloads cósmicos e bombardeios eletromagnéticos, sobre a cabala de Coltrane e suas leituras em família de Helena Blavatsky, somados a excertos e músicas do show, junto com a Orquestra Rumpilezz, que rolou no mesmo dia da entrevista. O grupo Opanijé, também de Salvador, foi o convidado da noite, numa fusão de RAP com Jazz e Música Ancestral única. Ao final a versão de estúdio da música Se Diz, do Opanijé, com participação da Rumpilezz e arranjo de Letieres Leite. O disco sai no final de 2013.





Esta velha angústia, 
Esta angústia que trago há séculos em mim, 
Transbordou da vasilha, 
Em lágrimas, em grandes imaginações, 
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror, 
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum. 

Transbordou. 
Mal sei como conduzir-me na vida 
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma! 
Se ao menos endoidecesse deveras! 
Mas não: é este estar entre, 
Este quase, 
Este poder ser que... 
Isto. 

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém, 
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio. 
Estou doido a frio, 
Estou lúcido e louco, 
Estou alheio a tudo e igual a todos: 
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura 
Porque não são sonhos. 
Estou assim... 

Pobre velha casa da minha infância perdida! 
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto! 
Que é do teu menino? Está maluco. 
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano? 
Está maluco. 
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou. 

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer! 
Por exemplo, por aquele manipanso 
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África. 
Era feíssimo, era grotesco, 
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê. 
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer — 
Júpiter, Jeová, a Humanidade — 
Qualquer serviria, 
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo? 

Estala, coração de vidro pintado! 

Álvaro de Campos


ISMAEL - LEV - 2013

ONTOLOGIA GUARANY CONTRA O NAZISMO PSÍQUICO





O nazismo psíquico, ao se configurar como a fronteira entre o "jardim fechado da infância" e a sociedade de controle dos adultos, não consegue atingir aquilo que podemos falsamente nomear como ‘pólen’ ou os resquícios da infância que não são completamente processados, ou seja, assassinados pela lógica do anti-ser ou do semi-ser também conhecidas como a lógica das nomeações, em síntese, a lógica do mercado…

Em verdade vos digo que o Adulto não existe, ele é o deserto e a miragem e a miragem não é a infância, a miragem é o controle.

A criança interior não é uma miragem ou uma possibilidade utópica, ela é a pérola dentro de ti, ela é o Índio dentro de ti. O louco dentro de ti.

(No mundo do controle a criança é invertida através do louco, através do presidiário, através do índio, mas neles o espírito quer florescer)

A dimensão do entre é onde se dão os encontros dos corpos de todas as coisas com o humano delas, corpo-lugar que recebe o canto-reza da palavra e do silêncio, entrecorpos da visitação das vozes do visível e do invisível que entram em estado de transe no corpomundo onde noções como dentro e fora são insuficientes, tudo começa e termina no transe do corpo, o entre é o entre do corpo, o entre dos diálogos e entre da amizade das coisas pelas coisas. Por isso é importante se abrir para a desnomeação, desterritorialização do corpo como ente transcedental, para o estudo dos processos de imanência. Para o diálogo em todas as suas formas como relembramento de vivências e experiências de alteridade radical e como cartografia para além das categorias, para a phala do corpo, a pulsação do corpo, este índio da tribo do sopro das energias. Os poetas estão no mundo como índios, como loucos que são índios psíquicos, como crianças que são a materialidade ontológica da dimensão do entre, crianças estão entre o onírico e o sagrado, entre o animal e o anjo, entre o éden e a árvore no meio da névoa-nada. Podemos dizer que as subjetividades ocidentais não servem mais para o poema. Que Artaud é o Moisés e o corpo e a montanha, a estrela e o céu são a mesma coisa. Que a única fronteira que ficará intacta será a fronteira do estranhamento, fundada pelo poema, a fronteira entre as limitações da língua e as descobertas da linguagem que avança para o sonho, para o indefinível, para o inominável, que avança para o mundo. Aquilo que Clarice Lispector quis dizer com ‘A descoberta do mundo’ é o que está prestes a acontecer, não o fim, nem o começo, a descoberta. Agora uma epígrafe fora do lugar, um fragmento de Rimbaud, da iluminações recriado por mim, do poema ‘Com vinte anos’

As vozes que ensinam todas exiladas…A ingenuidade física, material guardada com uma amargura, uma angústia contida, pausada…Agora o Adágio, Ah, o egoísmo infinito dessa adolescência, o otimismo pesquisador: como era repleto de flores o mundo naquele verão! Formas e espirais no ar…um verdadeiro coro, para acalmar a impotência e a ausência! Um coro de melodias obscuras como vidros…O fato é que os nervos estão expostos!

Num território sem lugar, um Atopos que a partir da nossa interioridade cancela as fronteiras entre o mundo e nosso corpo, onde flores são como um coro de tragédia grega e como nervos ao mesmo tempo, em que as coisas são mediadas por uma transparência obscura como vidro que pode muito bem ser noção de Alma, que tudo indica não ser algo individual, somos todos uma Alma separada em milhões de formas que se movem em espirais em direção ao fim do tempo, em direção à morte do tempo, isso que uns ousam chamar de eternidade e outros de infinito, é este território que iremos ocupar com nossa hiperpresença, porque não concebo os mortos como ausentes, os mortos entram em um estado de hiperpresença, estão muito mais aqui do que nós podemos conceber, nós de um modo misterioso somos as luzes que os mortos acenderam.

CAOS


O Caos nunca morreu. Bloco intacto e primordial, único monstro digno de adoração, inerte e espontâneo, mais ultravioleta do que qualquer mitologia (como as sombras à Babilônia), a original e indiferenciada unidade-do-ser ainda resplandece, imperturbável como as flâmulas negras frenética e perpetuamente embriagada dos Hashishins.

O caos é anterior a todos os princípios de ordem e entropia, não é nem um deus nem uma larva, seus desejos primais englobam e definem toda coreografia possível, todos éteres e flogísticos sem sentido algum: suas máscaras, como nuvens, são cristalizações da sua própria ausência de rosto.

Tudo na natureza, inclusive a consciência, é perfeitamente real: não há absolutamente nada com o que se preocupar. 

As correntes da Lei não foram apenas quebradas, elas nunca existiram. Demônios nunca vigiaram as estrelas, o Império nunca começou, Eros nunca deixou a barba crescer.

Não. Ouça, foi isso que aconteceu: eles mentiram, venderam-lhe ideias de bem e mal, infundiram-lhe a desconfiança de seu próprio corpo e a vergonha pela sua condição de profeta do caos, inventaram palavras de nojo para seu amor molecular, hipnotizaram-no com a falta de atenção, entediaram-no com a civilização e todas as suas emoções mesquinhas.

Não há transformação, revolução, luta, caminho. Você já é o monarca de sua própria pele – sua liberdade inviolável espera ser completa apenas pelo amor de outros monarcas: uma política de sonho, urgente como o azul do céu.

Para lograr abrir mão de todos os acentos e hesitações ilusórias da história, é preciso evocar a economia de uma Idade da Pedra lendária – xamãs e não padres, bardos e não senhores, caçadores e não policiais, coletores paleoliticamente preguiçosos, gentis como sangue, que ficam nus para simbolizar algo ou se pintam como pássaros, equilibrados sobre a onda da presença explícita, o agora-sempre atemporal.

Agentes do caos lançam olhares ardentes a qualquer coisa ou pessoa capaz de suportar ser testemunha de sua condição, sua febre por lux et voluptas. Estou desperto apenas no que amo e até o limite do terror – todo o resto é  apenas mobília coberta, anestesia diária, merda para cérebros, tédio sub-réptil de regimes totalitários, censura banal e dor desnecessária.

Avatares do caos agem como espiões, sabotadores, criminosos do amor louco, nem generosos nem egoístas, acessíveis como crianças, semelhantes a bárbaros, perseguidos por obsessões, desempregados, sexualmente perturbados, anjos terríveis, espelhos para a contemplação, olhos que lembram flores, piratas de todos os signos e sentidos.

Aqui estamos, engatinhando pelas frestas entres as paredes da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monolitos paranóicos. Arrancados da tribo pela nostalgia selvagem, escavamos em busca de mundos perdidos, bombas imaginárias.

A última proeza possível é aquela que define a própria percepção, um invisível cordão de ouro que nos conecta: dança ilegal pelos corredores do tribunal. Se eu fosse beijar você aqui, chamariam isso de um ato de terrorismo – então vamos levar nossos revólveres para a cama e acordar a cidade à meia-noite como bandidos bêbados celebrando a mensagem do sabor do caos com um tiroteio.


Hakim Bey, texto inicial de  
Caos - Terrorismo poético e outros crimes exemplares 

SCHERZO RAJADA - CONTRA O NAZISMO PSÍQUICO - 2013

BREVE HISTÓRIA DO XAMANISMO


Hegel procurou seu protetor xamânico na
flor negra
Novalis na flor azul
São Francisco quis perpetuar seu tótem no cântico
delle Creature
o gavião de penacho
fez a cabeça de
Oswald de Andrade
o girassol da madrugada
dissipou a couraça
Católica de Mário
(o clã do jabuti agradece)
Holderlin dançou
em torno do Eter
como um navajo
Trakl escureceu o dia
com seus pântanos e miasmas
Dante atravessou 3 reinos em êxtase
viu a luz no fim do túnel
Lautreamont se comparava à águia e ao dragão
Pasolini sonhava com o Centauro
Gonçalves Dias e seu sabiá melancólico
Ionesco criava rinocerontes ameaçadores
O Sol negro levitou Artaud
até o céu do peyote
Michaux às vezes incorporava o rio negro
Alma de Eliot onde trota o arganaz
Walt Whitman e seu martim pescador revoando no crepúsculo
D. H. Lawrence chamou todos os animais
E plantas em seus poemas
Gianbatista Vico incorporou um exu chamado Bestione
William Blake, poeta druida, incendiou o tigre nas florestas da noite
(suas profecias contra a sociedade industrial, todas vingaram)
graciosa coxa de Pan alucinou Rimbaud
W B Yeats recebia um gnomo surrealista
Ovo primordial De Arp Águia ou Sol?
Onde Octavio Paz engatilha suas flores surrealistas
um índio Hopi presenteou Jung com um urso de madeira
Jorge Luis Borges
E seus protetores imaginários
Guimarães Rosa janta hoje com Jaguaretê
Dino Campana entrava na gira de Orfeu
Leopardi & o Brasão onde o leopardo rampante gerou seu nome
Paracelso dizia que não devemos evocar elementares  
(são as bruxas)
a Nasa treina astronautas no vácuo xamânico
eu espero o Sol /Gavião nesta colina que dança.


Roberto Piva



BALOJI - KINSHASA SUCCURSALE - 2011